quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Está na hora de sairmos da Matrix!


A vida nos ensina, isso é fato! Resolvi reler um livro que havia lido há alguns anos atrás. Um livro que foi marcante na época em que li, mas que já não me lembrava com tanta nitidez de seus ensinamentos. Voltou no momento certo. E me fez entender minha fascinação pelos ensinamentos dos filmes. Tudo são na verdade ensinamentos da vida. Por isso transcrevo aqui um dos capítulos do livro ILUSÕES – As aventuras de um Messias Indeciso de Richard Bach. Pra mim esse é o melhor de seus livros pois contém o ensinamento dos outros. Espero que gostem e sintam-se incentivados para ler o livro por inteiro.
E por quê essa foto? Pois pra mim o filme Matrix ilustra um pouco tudo isso! Afinal, a colher não existe ;-)

Obs: Esse livro é facilmente encontrado para download na internet pois faz parte do projeto democratização da leitura.

Capítulo 8

Terminamos o dia em Hammond, Wisconsin, transportando alguns passageiros de segunda-feira. Depois fomos até a cidade a pé para jantar e voltamos.
- Don, concordo que esta vida pode ser interessante ou cacete ou o que quer que desejamos que seja. Mas mesmo em meus momentos mais brilhantes nunca consegui descobrir por que estamos aqui, para começar. Fale-me algo sobre isso.
Passamos pela loja de ferragens (fechada) e pelo cinema (aberto: Butch Cassidy and the Sundance Kid) e, em vez de responder, ele parou e virou na calçada.
- Você tem algum dinheiro, não?
- Muito. Mas o que é que há?
- Vamos ver o filme - disse ele. - Você paga?
- Não sei, Don. Vá você. Vou voltar para os aviões. Não gosto de deixá-los sozinhos por tanto tempo.
O que havia de tão importante, de repente, num filme?
- Os aviões estão bem. Vamos ao cinema.
- Já começou a sessão.
- Então entramos atrasados.
Ele já estava comprando sua entrada. Acompanhei-o à sala de projeção e nos sentamos na última fila. Devia haver umas 50 pessoas em volta de nós, no escuro.
Depois de algum tempo, esqueci-me do motivo pelo qual estávamos ali e me interessei pelo filme, que sempre considerei um clássico, de qualque r forma;aquela era a terceira vez que via Sundance. O tempo que passamos no cinema se espiralou e se espichou, como acontece com um bom filme, e, durante algum tempo, fiquei observando os detalhes técnicos... como cada cena era projetada e adaptada à seguinte, por que uma cena naquele momento e não mais tarde. Tentei olhar desse modo, mas me envolvi na história e esqueci. No pedaço em que Butch e Sundance são cercados por todo o exército boliviano, quase no final, Shimoda tocou no meu ombro. Inclinei-me para ele, olhando o filme, querendo que deixasse para depois o que tinha para dizer.
- Richard?
- Sim.
- Por que você está aqui?
- É um bom filme, Shimoda. Pssiu.
Butch e Sundance, cobertos de sangue, estavam dizendo por que deviam ir para a Austrália.
- Por que é bom? - perguntou ele.
- Ê divertido. Pssiu. Depois eu conto.
- Pare com isso. Acorde. É tudo ilusão.
Fiquei irritado.
- Donald, só mais alguns minutos e depois podemos conversar quanto você quiser. Mas me deixe ver o filme, OK ?
Ele sussurrou intensamente, dramaticamente:
- Richard, por que você está aqui?
- Escute, estou aqui porque você pediu para virmos aqui!
Virei-me e tentei assistir ao final.
- Você não precisava vir, podia ter dito: não, obrigado.
- GOSTO DO FILME...
Um homem na minha frente virou-se para me olhar por um instante.
- Gosto do filme, Don; há alguma coisa de errado nisso?
- Nada, em absoluto - falou ele.
E não disse mais uma palavra até o filme acabar e passarmos pelo lote de tratores usados, nos dirigindo para o escuro, para o campo e os aviões. Estava ameaçando chuva.
Pensei sobre o seu estranho comportamento no cinema.
- Você faz tudo por algum motivo, Don?
- Às vezes.
- Por que o filme? Por que de repente você quis ver Sundance.
- Você fez uma pergunta.
- Sim. E você tem uma resposta?
- É essa a minha resposta. Fomos ao cinema porque você fez uma pergunta.
O filme foi a resposta à sua pergunta.
Estava rindo de mim, eu sabia.
- Qual foi a minha pergunta?
Seguiu-se um silêncio prolongado e magoado.
- A sua pergunta, Richard, foi por que mesmo em seus momentos mais brilhantes você nunca conseguiu descobrir por que estamos aqui.
Lembrei-me.
- E o filme foi a minha resposta.
- Foi?
- Você não compreende - disse ele.
- Não.
- O filme foi bom - continuou - mas o melhor filme do mundo ainda assim é uma ilusão, não é mesmo? As fotos nem sequer estão se movendo: apenas parecem estar se movendo. Luzes variáveis que parecem mover-se por uma tela plana montada no escuro?
- Bem, sim.
Eu estava começando a compreender.
- As outras pessoas, quaisquer pessoas, em qualquer lugar, que vão assistir a qualquer filme, por que estão lá, quando é tudo ilusão?
- Bem, é um divertimento - disse eu.
- Divertimento. Certo. Um.
- Pode ser educativo.
- Bom. Sempre é isso. Aprender. Dois.
- Fantasia, fuga.
- Isso também é divertimento. Um.
- Motivos técnicos. Ver como se faz um filme.
- Aprender. Dois.
- Fuga do tédio...
- Fuga. Você já disse isso.
- Social. Para estar com os amigos - disse eu.
- Motivo para ir, mas não para ver o filme. Isso é divertimento, de qualquer forma. Um.
Tudo o que eu inventava se adaptava aos dois dedos dele; as pessoas vêem os filmes por divertimento, para aprender ou ambos.
- E um filme é como uma vida, Don, certo?
- Sim.
- Então, por que alguém vai escolher uma vida má, um filme de terror?
- Não somente vão assistir a um filme de terror para se divertirem, como sabiam que ia ser um filme de terror quando entraram - disse ele.
- Mas por que...?
- Você gosta de filmes de terror?
- Não.
- Nunca os vê?
- Não.
- Mas não há gente que gasta muito tempo e dinheiro para ver o terror, ou problemas novelescos que para outras pessoas são monótonos e cacetes...?
Ele deixou que eu respondesse à pergunta.
- Sim.
- Você não é obrigado a ver os filmes deles e eles não são obrigados a ver os seus. É o que se chama de “liberdade”.
- Mas por que é que alguém havia de querer ficar apavorado? Ou caceteado?
- Porque acham que o merecem por apavorar outras pessoas, ou gostam da emoção do pavor, ou então acham que os filmes devem ser cacetes. Você pode acreditar que muitas pessoas, por motivos justos para elas, gostam de crer que são desamparadas em seus próprios filmes? Não, não pode.
- Não posso, não - disse eu.
- Até você compreender isso, vai ficar imaginando por que algumas pessoas são infelizes. Elas são infelizes porque resolveram ser infelizes, e, Richard, isso está certo!
- Hummm.
- Somos criaturas que brincam, que se divertem, somos as lontras do Universo. Não podemos morrer, não nos podemos ferir mais do que se podem ferir as ilusões na tela. Mas podemos acreditar que estamos feridos, com todos os detalhes agonizantes que quisermos. Podemos acreditar que somos vítimas, mortas e matando, envolvidas pela boa e pela má sorte.
- Muitas vidas? - perguntei.
- Quantos filmes você já viu?
- Ah.
- Filmes sobre viver neste planeta, ou em outros planetas; qualquer coisa que tiver espaço e tempo é filme e ilusão - disse ele. - Mas por algum tempo podemos aprender muita coisa e nos divertir muito com nossas ilusões, não é?
- Até onde você leva esse negócio de filme, Don?
- Até onde você quer? Hoje viu o filme em parte porque eu o queria ver.
Muitos escolhem determinadas vidas porque gostam de fazer coisas juntos. Os
atores do filme de hoje já representaram juntos em outros filmes... antes ou depois, depende de qual filme você viu primeiro, e você os pode ver ao mesmo
tempo em telas diferentes. Nós compramos entradas para esses filmes, pagando a admissão, concordando em acreditar naquelas realidades do espaço e do tempo... Nenhuma das duas é a verdade, mas quem não quiser pagar esse preço não pode aparecer neste planeta, nem em qualquer sistema de espaço-tempo.
- Existem pessoas que não têm vidas no espaço-tempo?
- Existem pessoas que nunca vão ao cinema?
- Sei. Aprendem de modos diferentes?
- Certo - disse ele, satisfeito comigo. - O espaço-tempo é uma escola
bastante primitiva. Mas muita gente fica com a ilusão, mesmo que seja cacete, e não quer que as luzes se acendam muito cedo.
- Quem escreve esses filmes, Don?
- Não é estranho ver o quanto sabemos, se nos fizermos as perguntas, em vez de perguntar aos outros? Quem escreve esses filmes, Richard?
- Somos nós - disse eu.
- Quem os representa?
- Nós.
- Quem é o cinegrafista, o projetor, o gerente do teatro, o bilheteiro, o distribuidor, e quem assiste ao trabalho de todos? Quem tem a liberdade de sair no meio, a qualquer momento, mudar o enredo, quem é livre para ver o mesmo filme várias vezes?
- Deixe-me adivinhar - disse eu. - Quem o quiser?
- Isso basta como liberdade para você? - perguntou ele.
- E é por isso que os filmes são tão populares? Instintivamente sabemos que são um paralelo de nossas próprias vidas?
- Talvez sim... talvez não. Isto não importa muito, certo? O que é o projetor?
- A mente - disse eu. - Não. A imaginação. É a nossa imaginação, diga você o que quiser.
- O que é o filme? - perguntou.
- Aí você me enrascou.- Tudo o que permitimos que entre em nossa imaginação?
- Talvez, Don.
- Você pode segurar nas mãos um rolo de filme - disse ele - que esteja completo; princípio, meio e fim estão todos ali, naquele mesmo segundo, milionésimo de segundo. O filme existe além do tempo que ele registra, e se você souber qual é o filme, sabe de antemão o que vai acontecer, em linhas gerais: haverá batalhas e agitação, vencedores e perdedores, romance e desastre; você sabe que tudo isso estará ali. Mas a fim de ser envolvido e empolgado por aquilo, a fim de apreciá-lo ao máximo, você tem de colocá-lo num projetor e deixar que passe pela lente de minuto em minuto... Qualquer ilusão exige espaço e tempo para ser experimentada. Portanto, você paga o seu níquel, compra a entrada, se instala, se esquece do que está se passando fora do teatro e o filme começa para você.
- E ninguém se machuca de verdade? O sangue é só molho de tomate?
- Não. É sangue mesmo - respondeu. - Mas bem que poderia ser molho de tomate, pelo efeito que tem em nossa vida real...
- E a realidade?
- A realidade é divinamente indiferente, Richard. Uma mãe não se importa com o papel que o filho representa em suas brincadeiras; um dia o vilão, no outro, o mocinho. O Ser nada sabe a respeito de nossas ilusões e brincadeiras. Só conhece a Si, e a nós, à sua semelhança, perfeitos e acabados.
- Não sei bem se quero ser perfeito e acabado. Fale sobre o tédio...
- Olhe para o céu - disse ele. Foi uma mudança de assunto tão rápida que olhei para o céu. Havia uns cirros fragmentados, bem no alto, os primeiros raios de Lua prateando as bordas.
- Céu bonito - disse eu.
- É um céu perfeito?
- Bem, é sempre um céu perfeito, Don.
- Você quer dizer que, embora mude a todo instante, o céu é sempre um céu perfeito?
- Puxa, como sou esperto. Sim!
- E o mar é sempre um mar perfeito, e está sempre mudando, também - disse ele. - Se a perfeição for a estagnação, então o céu é um pântano! E o Ser não é propriamente um fruto do pântano.
- Perfeito, e mudando o tempo todo. Sim, aceito isso.
- Você já aceitou há muito tempo, se insiste no tempo.
Virei-me para ele, enquanto caminhávamos.
- Você não se chateia, Don, de ficar sempre apenas nesta dimensão?
- Ah. Estou ficando apenas nesta dimensão? - perguntou. - E você?
- Por que é que tudo o que digo é errado?
- Tudo o que você diz é errado?
- Acho que estou no negócio errado.
- Você acha que talvez o negócio imobiliário...? - perguntou ele.
- Imobiliário ou seguros.
- Há futuro no imobiliário, se é isso que você quer.
- OK. Desculpe - disse eu. - Não quero um futuro. Nem um passado. Prefiro me tornar um bom Mestre do Mundo da Ilusão. Está parecendo que será dentro de mais uma semana?
- Bem, Richard, espero que não demore tanto assim!
Olhei-o com cuidado, mas ele não estava sorrindo.