O filme O Filho de 1000 Homens, disponível na Netflix, vai além de uma simples história sobre a busca de um homem por um filho. Ele nos leva a uma jornada profunda e reveladora sobre como o trauma molda nossas vidas e a maneira como o vínculo humano pode ser a chave para a cura.
Através da intensa narrativa de Crisóstomo, um homem marcado por perdas e solidão, o filme nos desafia a refletir sobre o que realmente significa curar as feridas do passado e encontrar um novo sentido no presente.
Com base na abordagem da Experiência Somática (Somatic Experiencing), trago meu olhar sobre a cura de traumas, e convido você a olhar para suas experiências e mergulhar mais fundo nesta reflexão.
Como o filme Ilustra a Experiência Somática
A vida de Crisóstomo é marcada por experiências traumáticas intensas, vivenciadas desde a infância. O filme revela que ele foi forçado a se criar sozinho, isolado em uma caverna, um ambiente que simboliza o trauma profundo e o distanciamento do mundo.
Essa abordagem da Experiência Somática, com base na teoria de Levine, permite compreender como esses personagens são definidos por suas vivências traumáticas.
Segundo a teoria, o trauma não reside no evento em si, mas sim no corpo. O sistema nervoso, ao tentar lidar com os traumas vividos, desconecta-se e armazena uma carga de estresse.
Esse estresse acumulado que não pôde ser processado ou liberado fica retido como uma carga no organismo.
Pessoas que vivenciam isso carregam sensações e desconfortos que são memórias retidas no corpo. Eventos do dia a dia funcionam como gatilhos emocionais, reativando essas memórias do passado.
Se for possível processar e liberar o estresse que não foi integrado, a carga traumática é desfeita.
Neurocepção de Perigo e Dissociação: o trauma no corpo
As experiências traumáticas de Crisóstomo e de outros personagens demonstram como o corpo reage a essa carga retida. Em termos de sistema nervoso, a pessoa tende a permanecer em um estado de alerta ou perigo, e pode até precisar se dissociar.
O trauma profundo pode levar o indivíduo a evitar o contato ou o toque, especialmente se o toque ou a aproximação de outro tiver sido a fonte original da experiência traumática.
Muitos personagens no filme parecem ter vivenciado o que é chamado de trauma de desenvolvimento, que ocorre durante a infância ou adolescência.
Este tipo de trauma nem sempre se resume a um único marco, podendo ser uma recorrência de fatos sofridos no vínculo com alguém importante, como pais ou cuidadores.
Muitas vezes ele é a raiz de muitos problemas de autoestima e dificuldades com relacionamentos na fase adulta, e às vezes alguns sintomas como ataques e crises de pânico.
A consequência é que o sistema nervoso da pessoa é programado para uma neurocepção de insegurança e perigo.
A neurocepção é como se fosse um sistema de vigilância do sistema nervoso autônomo que sinaliza se há perigo ao redor e como o sistema deve se preparar para ele.
O indivíduo, que aprendeu que a relação com o outro pode ferir e machucar, não consegue relaxar. Mesmo diante de demonstrações atuais de carinho e cuidado, o sentimento predominante é o desconforto e a insegurança.
O vínculo como caminho de cura
Apesar da dificuldade em confiar, o processo de cura, conforme a Experiência Somática e as reflexões propostas pelo filme, demanda a atualização desse sistema nervoso.
A pessoa precisa de um processo para que o sistema nervoso reconheça novamente um estado de segurança, e isso só pode acontecer no vínculo.
A máxima central é clara: trauma de vínculo (ou desenvolvimento) se cura com vínculo (ou seja, na relação com as pessoas). Este é o aspecto mais desafiador, pois se as pessoas foram feridas por outrem, o outro é invariavelmente percebido como perigoso.
Para a cura ocorrer, é necessário acolher e reconhecer a carga de estresse negativa retida. O sistema nervoso que está em modo de luta e fuga ou congelado precisa mudar a sua neurocepção.
A atualização do sistema nervoso ocorre em uma relação segura. Muitas vezes, essa jornada começa em uma relação terapêutica, onde o profissional possibilita ao indivíduo experimentar um estado de segurança e realizar as descargas necessárias da carga de estresse armazenada.
Liberando a Dor Guardada: A Importância da Relação Terapêutica
Ao liberar a carga do trauma, a pessoa começa a perceber o presente como ele realmente é, sem a "lente traumática do passado". Ela consegue olhar para os outros de forma mais objetiva, sem os filtros do trauma.
O processo de liberação da dor guardada no corpo é comparável a um circuito elétrico que, ao ser sobrecarregado, precisa ser descarregado em um aterramento seguro para voltar a funcionar corretamente.
O filme O Filho de 1000 Homens ilustra esse processo de maneira sensível e tocante. O núcleo central de personagens, incluindo Crisóstomo, é formado por indivíduos que viveram traumas profundos.
Apesar de não ser uma relação terapêutica, a partir do instante em que os personagens vão sendo aceitos e acolhidos cada um a sua maneira e ao seu próprio tempo, eles vão se sentindo seguros novamente.
De maneira similiar a um terapeuta, Crisóstomo age respeitando a dor de cada um e ajudando-os a expressá-las. Enquanto ele faz isso, pode curar suas próprias dores. Ele não permite que as dores do passado o impeçam de olhar o outro com amor. Pelo contrário, a ânsia pelo amor e contato e faz desejar ainda mais os vínculos e alimenta o desejo de se tornar pai e construir uma família.
A Integração e o Novo Núcleo Familiar
É através do acolhimento, processamento e integração da carga e do estresse que o sistema nervoso consegue se abrir para a possibilidade de um vínculo seguro, retomando o estado de segurança.
Apenas quando os personagens do filme se permitem unir e sentir as dores é que conseguem confiar e se sentir seguros novamente. Juntos, eles formam um novo núcleo, uma nova família, onde um possibilita que o outro processe o trauma.
A dor guardada no corpo, que faz as pessoas se sentirem sufocadas, pode ser liberada em um ambiente seguro e acolhedor, permitindo que o sistema nervoso volte ao estado seguro e ao engajamento social.
O filme serve como uma lição: com amor, acolhimento e respeito (não só pelo outro, mas por nós mesmos), é possível acolher as feridas do passado, expressar e processar as dores e olhar para o presente e o futuro com tudo o que eles podem oferecer.
O Filho de 1000 Homens e o caminho para o relacionamento saudável
A capacidade de restaurar a neurocepção de segurança é, portanto, a chave para um relacionamento saudável. Através do vínculo e da cura do trauma, podemos transformar nossa relação conosco mesmos e com os outros. Muitas vezes precisamos apenas de alguém que nos possibilidade um ambiente seguro para que as emoções do passado possam ser expressas em segurança e respeitosamente.
O Filho de 1000 Homens não é apenas uma história de dor, mas também uma história de superação e transformação, mostrando como o processo de cura é possível quando nos permitimos expressar as sensações e emoções reprimidas, e viver novamente com segurança e confiança.